Gisele Ducati


Nasci no interior, Piracicaba – SP, e cresci na zona leste da cidade de São Paulo. Quando criança podíamos brincar na rua. Tive a sorte de morar num lugar que chamávamos de vila, formado por 8 casas, 4 de cada lado, e um grande pátio central que permitia brincadeiras durante todo o dia, não fosse a escola: jogar futebol, bolinha de gude, bafo, empinar pipa, pega-pega, enfim, brincadeiras comuns entre os garotos no início dos anos 70. Não havia meninas da minha idade por ali e eu vivia em meio a molecada. De vez em quando ouvia que aquelas brincadeiras não eram “coisa de menina”. Viria a ouvir que Matemática também não era. Nas duas vezes, e tantas outras, ignorei.

Minha mãe sempre esteve à frente de seu tempo. Nunca houve uma brincadeira ou profissão que não fosse permitida a uma menina. Meninas podiam fazer de tudo, brincar do que quisessem, ser o que escolhessem, sem se importar com julgamentos alheios. Para alcançar os objetivos almejados, bastaria dedicação. Isso me dava segurança e tranquilidade. Meu pai passava o dia fora. Nos finais de semana, dedicava-se à família. Costumava me propor desafios de diferentes tipos: algumas vezes era sobre como escrever uma palavra difícil, outras desvendar algum enigma, encontrar a folha mais simétrica ou ver quem fazia o gol mais bonito. Em minha teimosia, não sossegava enquanto não lhe desse as respostas corretas ou conseguisse impressioná-lo. Ele adorava e eu também. Isso fazia com que eu me sentisse inteligente e capaz.

Quando penso nesse período, consigo avaliar o quanto ele foi importante. Não que fosse de fato capaz para os desafios reais que me foram apresentados ou que, às vezes, não me sentisse insegura. Minha vida escolar, do básico ao ensino médio, ocorreu em escolas públicas. E nenhuma delas eram muito boas. No final do ensino básico, sabia que iria cursar uma  faculdade e que seria na área de exatas. Porém, ninguém na família (e olha que é grande!), havia ingressado no ensino superior. A falta de experiência dos meus pais, aliada à falta de orientação, levou-me para uma escola técnica, num curso que não seria nada útil para um futuro vestibular em matemática: secretariado. Aulas das disciplinas básicas, incluindo Matemática, aconteciam somente no primeiro ano e disciplinas profissionalizantes (datilografia, taquigrafia, dentre outras) nos dois anos seguintes. Encontrei pessoas maravilhosas nesse caminho, amigas queridas que fazem parte da minha vida ainda hoje mas, para minha escolha profissional, o ensino médio foi um desastre. Prestei vestibular certa de que fracassaria. Não deu outra. Por sorte, pude fazer um ano de cursinho, estudando muito e dormindo pouco, tentando preencher as enormes lacunas na minha formação. Naturalmente, o alvo era uma universidade pública. E, dessa vez, deu certo!

Fui aprovada em diversas instituições e escolhi cursar Matemática na Universidade de Campinas. Assim começou minha vida acadêmica. O contato com colegas de todo o canto, com experiências e interesses tão heterogêneos, aliado a um ambiente efervescente era muito mais do que poderia conceber. Durante esse período, decidi que essa seria minha vida. Fazer mestrado, doutorado e tornar-me professora de alguma universidade pública, claro!

Durante a graduação, entendi que poderia aliar meu interesse pela Física à Matemática. Havia um grupo de Física-Matemática no Instituto e assim, com uma iniciação científica, acabei definindo que migraria para a Matemática Aplicada. Assim aconteceu. Não havia mulheres nesse grupo, nem entre as alunas, nem entre os professores. Terminei a graduação e já dei início ao mestrado.

No final do mestrado, houve uma oportunidade de prestar concurso na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. Naquele tempo ainda era possível prestar concurso sem ter o doutorado. No ano anterior, Curitiba havia hospedado um congresso de Matemática Aplicada. Tinha adorado a cidade. Vi nesse concurso uma boa oportunidade para iniciar minha carreira. Fui aprovada e assumi a função de docente na UFPR em 1996. Foi ali que dei minha primeira aula. Eu com 25 anos e uma turma de uns 60 alunos da Engenharia Elétrica. Foi tenso. E a aula, péssima. Depois de algumas aulas e passado o desconforto inicial, percebi algo novo: eu estava adorando dar aula e percebendo o quanto a sala de aula aprimorava meus conhecimentos. Assim que pude, me afastei para fazer o doutorado na mesma área, novamente na UNICAMP. Após um início levemente conturbado, as coisas se encaixaram. Estava curtindo as aulas, explorando novos assuntos e ficando fascinada com outros. Definido o argumento que viria a me acompanhar para o resto da vida acadêmica, restava-me aproveitar o máximo. Nada havia mudado com relação à presença feminina. Eu continuava a única mulher do grupo.

Esse foi um período muito interessante e enriquecedor. Participei de congressos internacionais, assisti a palestra de Gerard ‘t Hooft um ano depois dele ganhar o prêmio Nobel por elucidar a estrutura quântica das interações eletrofracas, dei seminários em algumas universidades italianas e passei um breve tempo na Universidade do Salento. Uma das experiências mais bacanas foi um workshop com pouquíssimos participantes: 15 professores sendo uma mulher e eu, a única aluna. Estava no segundo ano do doutorado. Professores importantes na área de álgebras não comutativas estavam presentes. O cronograma foi definido num pub, com a participação de todos, em meio a boas cervejas num clima amistoso. Eles estavam entre amigos, conversando sobre Matemática de forma entusiasmada. Jamais poderia imaginar essa cena comigo ali presente. Dei sorte de apresentar logo no primeiro dia e poder aproveitar o resto da semana assistindo as palestras e discussões, livre de repetir o seminário mil vezes no meu quarto, nervosa, na expectativa do que seria minha apresentação. Em todos esses eventos, muitos homens e pouquíssimas mulheres. Defendi minha tese em 2002 e retornei a Curitiba. Essa vivência me deu a certeza de que aquela escolha feita, ainda de forma imatura no início da graduação, mostrava-se certeira. Depois de passar alguns anos lá, por questões pessoais, quis retornar a São Paulo, e foi assim que a UFABC entrou na minha vida. No início de 2008, dei minha primeira aula de Funções de uma Variável.

Relembrando meu percurso, com escolhas boas e ruins, reconheço a sorte de poder trabalhar em uma Universidade pública. Com toda a experiência acumulada, vejo o quanto a universidade melhorou no que se refere a políticas afirmativas. Há muito a ser feito. De uns tempos para cá, também percebi que há mais mulheres atuando nas áreas relacionadas à Matemática, Física, Computação, e confirmando que cabem muitas outras. Ainda somos sub representadas em cargos importantes nas universidades, sociedades e instituições de pesquisa. As matrículas em cursos que dessas áreas ainda são predominantemente masculinas.

Se você se interessa por Matemática, não se intimide! Não é uma área fácil mas nada que dedicação e empenho não te ajudem a superar as dificuldades. Além disso, você não está sozinha.

— Publicado em 21/07/2021

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