Nise da Silveira

— Maria Eduarda Brandão


A médica brasileira mudou de uma vez por todas a maneira como as doenças psiquiátricas eram encaradas

Nise da Silveira nasceu no dia 15 de fevereiro de 1905 em Maceió no Estado de Alagoas e foi uma das mais brilhantes psiquiatras do mundo. Iniciou os estudos, aos 21 anos, na Faculdade de Medicina da Bahia em 1921 contrariando o desejo e expectativas de sua mãe em torná-la pianista como ela. Foi a única mulher numa turma de 157 alunos, na qual encontrou seu futuro marido, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira. Graduou-se em 1926 com a tese “Ensaio Sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil”. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927 após a morte de seu pai, começou a frequentar frequentemente círculos de estudo marxistas junto com seu marido e já escrevia sobre medicina para um jornal carioca denominado A Manhã, seus artigos eram reproduzidos para o Jornal de Alagoas.

Em 1932 iniciou estágio na renomada clínica neurológica de Antônio Austregésilo, no ano seguinte entrou para o serviço público, através de concurso , trabalhando no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, na Praia Vermelha. Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, segundo a própria Nise acabou sendo denunciada por uma enfermeira devido a seus livros marxistas “subversivos” que guardava na sua estante e foi presa política durante 15 meses no presídio Frei Caneca. Foi companheira de cela da militante Olga Benário e manteve contato com o escritor Graciliano Ramos que escreveu sobre ela no seu livro “Memórias do Cárcere” (José Olympio Ed., RJ, 1953):

Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço. O marido também era médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento.

Graciliano Ramos

Após ser libertada, se dedica a estudar Spinoza e escrever suas conclusões e reflexões em cartas que atualmente são públicas. Na primeira metade de 1944 foi reintegrada ao serviço público e realocada para o Hospital Pedro II, no subúrbio do Rio de Janeiro. Foi um período difícil para nossa heroína que se sentia incapaz de exercer sua profissão, já que era um hospital com práticas abusivas e violentas para com os pacientes, como choques elétrico, cardiazólico e insulínico, as camisas de força, o isolamento, a lobotomia e outros métodos da época, ainda mais brutais quando recordamos das torturas que a política de Getúlio Vargas aplicava a seus presos políticos e que ela já era familiarizada. Sua humanidade a faria lutar pelos ideais de Laing e Cooper (antipsiquiatria), Basaglia (psiquiatria democrática) e Jones (comunidade terapêutica). Nise trabalhou em conjunto com o psiquiatra Fábio Sodré na introdução da Terapia Ocupacional (TO) na instituição, o que deu origem à Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico Pedro II, que foi dirigido por Nise desde 1946 (ano de sua criação) até a mesma se aposentar em 1974. Segundo Nise, a TO permitia “a expressão de vivências não verbalizáveis que no psicótico estão fora do alcance das elaborações da razão e da palavra”.

Focando em práticas humanas, o STOR tinha setores específicos, mas o que o tornaria famoso viria ser a estruturação do Ateliê de Pintura, que foi auxiliada pelo até então estagiário Almir Mavignier. A produção dos pacientes tornou-se um material referencial sobre as imagens da psicose, preocupada em preservar o acervo artístico dos pacientes, Nise viria a criar em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente. 

Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.

Nise da Silveira

A médica também foi pioneira ao enxergar o valor terapêutico da interação dos internos com animais (gatos e cães), o cuidar dos animais tinha um efeito positivo e regulador nestes pacientes, e esta relação com animais acompanhou-a por toda a vida. Para Nise, a TO era uma psicoterapia não verbal, única e mais apropriada para a reabilitação de psicóticos, ressaltou que essa técnica era mais abrangente pois a comunicação com os esquizofrênicos graves só poderia ser feita inicialmente em nível não verbal. 

Nise destrinchou a TO sob cada ponto de vista da época, de Kraepelin a Freud e Jung, conectando-a sob cada nova perspectiva, entretanto sem subordinar-se a nenhuma das escolhas, mesmo quando encontrou a base explicativa para a produção artística presente no STOR em Jung, assim como a possível linguagem para entender o processo da psicose. Fundou a Casa das Palmeiras, uma instituição que visava atendimento aos pacientes sem internação ou restrição de liberdade. Fundou, em 1955, o Grupo de Estudos C.G. Jung, que funciona até hoje na mesma localização, presidiu as reuniões até sua morte em 1999. O encontro e atenção que Nise dispôs a psicologia Junguiana foi essencial já que devido as produções artísticas do Ateliê, ela percebeu uma sobreposição de figuras circulares ou “mandalas”, assim como temas mitológicos e religiosos eram recorrentes. Nise logo constatou que as produções vinham do inconsciente daqueles pacientes.

A partir de 1954, manteve correspondência constante com Jung, onde ela discorreu sobre as mandalas produzidas por seus psicóticos que impressionaram Jung assim como o material do Museu de Imagens do Inconsciente. Jung reafirmou as crenças de Nise ao aconselhá-la a estudar mitologia e religiões, enquanto enfatizava que o inconsciente coletivo se expressa através da linguagem dos mitos e que eles resumem a experiência ancestral como um todo da humanidade, sendo simbolizada por meio de figuras (arquétipos) e que esse inconsciente era o depósito dessas representações arquetípicas. Isso foi imprescindível para Nise, pois sua crença que a linguagem das pinturas, modelagens e desenhos de seus artistas psicóticos seria a dos arquétipos, e que isto era uma ponte para ela entender a psicose, a Psicologia Junguiana marcou definitivamente a vida da eminente psiquiatra brasileira.

O primeiro encontro entre esses dois gigantes aconteceu em 1957, no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique na Suíça, durante a inauguração da exposição “Esquizofrenia em Imagens”, do Museu de Imagens do Inconsciente de Jung com a presença da Nise que fora para a Suíça com bolsa do CNPq. Esta mostra artística causou uma enorme sensação e causou o reconhecimento mundial das ideias e do trabalho de Nise da Silveira. 

Nise morreu em 1999, aos 94 anos, na cidade do Rio de Janeiro onde viveu grande parte de sua vida, devido a insuficiência respiratória. Nise não foi apenas uma médica à frente de seu tempo, mas com sua força e personalidade enfrentou o preconceito, machismo e a resistência. Seu espírito permanece vivo e inspirando novas mulheres através de seu legado tão firme.

Para quem se interessar, em 2016 estreou o filme “Nise – O coração da Loucura”, dirigido por Roberto Berliner e estrelado pela atriz Glória Pires, que busca contar a história dessa grande mulher.

Referências

BIERNATH, André. Você precisa conhecer a história de Nise da Silveira. Revista Veja Saúde. Brasil, 2 de abril de 2017. Disponível em: <https://saude.abril.com.br/blog/tunel-do-tempo/voce-precisa-conhecer-a-historia-de-nise-da-silveira/amp/>. Acesso em: 07/04/2021

CÂMARA, F. P. Vida e obra de Nise da Silveira. Psychiatry On-line Brazil, Brasil, Setembro de 2002. Vol.7 – Nº 9. Disponível em: <http://www.polbr.med.br/ano02/wal0902.php>. Acesso em: 07/04/2021

Uma psiquiatra rebelde. Centro Cultural do Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/uma-psiquiatra-rebelde.php> Acesso em: 07/04/2021


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Maria Eduarda Brandão